quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Orquestras sociais se multiplicam no Brasil, mudando o destino de jovens carentes


Jornal O Globo, Cultura

Conheça exemplos de projetos sociais que usam a música clássica como meio para a chamada 'cidadania sinfônica'


Integrantes da Orquestra Maré do Amanhã, fundada por Carlos Eduardo Prazeres (atrás, à direita): transformação social e busca de qualidade artística Leonardo Aversa / Agência O GLOBO

RIO - Tem jovem que chegou ao Programa Integração pela Música (PIM) de Vassouras e pediu: “Quero aprender violão e teclado.” Hoje estuda harpa e se interessa por oboé. Alguns garotos da Orquestra de Cordas da Grota do Surucucu, em Niterói, já foram revistados pela polícia dentro dos ônibus para ver se naquelas caixas estavam armas, em vez de inofensivos violinos — um pequeno contratempo diante dos prêmios colecionados pelo projeto. Antes de integrar a ONG Orquestrando a Vida, de Campos, um menino de 11 anos era tão problemático que seu irmão dizia: “Ele não vai passar dos 15 anos.” Largou o mundo das drogas e hoje, com 24, é um ótimo trompista, já tendo se apresentado no Carnegie Hall, em Nova York.

Dois gêmeos de 11 anos — órfãos que perderam o pai aos 2 meses e viram a mãe se prostituir em busca de trocados para comprar crack — superaram os problemas de comportamento após entrar no projeto Estrada Musical e tocar violino na Orquestra Maré do Amanhã, no Complexo da Maré. No primeiro dia do projeto Ação Social pela Música do Brasil no Morro dos Macacos, na Tijuca, há um mês, 108 alunos da favela se inscreveram — 30 deles com 6 anos. Dois percussionistas da Orquestra de Barra Mansa foram convidados para tocar dia 21 com a Orchestra Del Maggio Musicale Fiorentino, regidos por ninguém menos que Zubin Mehta.

A música clássica está mudando o destino de milhares de jovens carentes país afora. O fenômeno chamou a atenção de Heloísa Fischer, que edita a revista “VivaMúsica!”. O anuário deste ano traz um dossiê especial do fenômeno que ela batizou de Cidadania Sinfônica. Heloísa mapeou 92 projetos de “integração social por meio da prática orquestral” no Brasil.

— Nos últimos anos, o crescimento tem sido em progressão geométrica — diz Heloísa. — O Brasil está em sintonia com uma tendência internacional.

A base é o programa El Sistema, da Venezuela, idealizado pelo regente José Antonio Abreu. Mas, diz ela, o modelo brasileiro não é centralizado numa instituição, como lá.

— Aqui são iniciativas individuais pulverizadas, a cargo de ONGs ou órgãos de cultura.

Essa origem no El Sistema talvez explique um dado: o Estado do Rio, com 19 projetos de cidadania sinfônica, lidera o ranking nacional. E o Rio é a cidade campeã, com 12 — embora os dois maiores projetos, Guri e Instituto Baccarelli (Sinfônica Heliópolis), sejam paulistanos.

— O sistema da Venezuela é muito associado aos barrios, bolsões de pobreza, realidade muito parecida com a nossa — diz Heloísa.

Ambições artísticas

No Rio, tudo começou em 1995, com a Ação Social pela Música, criada pelo maestro David Machado, que por 20 anos havia colaborado com Abreu. Após sua morte, sua viúva, Fiorella Solares, deu continuidade às ações que hoje contemplam quase mil alunos em 20 comunidades pacificadas da cidade, e nos municípios de Petrópolis e Piraí, e Ji-Paraná, em Rondônia.

Além da preocupação social, os projetos costumam ter ambições artísticas.

— Não somos só um passatempo para ocupar o dia do adolescente. Nosso objetivo é prepará-lo para entrar no mercado de trabalho — diz Vantoil de Souza, coordenador geral do Música nas Escolas de Barra Mansa, cuja orquestra já acompanhou os balés Kirov e do Scala de Mião nos teatros municipais do Rio e de São Paulo.

São comuns as provas de seleção e as avaliações periódicas. Ano passado, João Vitor Duarte Muzy, de 13 anos, da Orquestra Maré do Amanhã, tirou pouco mais de 5 — a pior nota do projeto — e quase teve que sair.

— Eu passava quatro horas por dia jogando videogame — admite.

Mas ganhou uma segunda chance do idealizador, o maestro Carlos Eduardo Prazeres, e passou a jogar apenas cinco minutos diários. Este semestre tirou 9,75, a maior nota da turma.

— Estou mais concentrado. Sonho em me tornar músico profissional — diz ele, que adora tocar o “Minueto nº 3”, de Bach.

Os projetos culturais-comunitários abrem várias frentes de trabalho para os jovens. Muitos se tornam monitores e professores dos próprios projetos, como Luiz Henrique Moreira Lima, de 24 anos, que começou a estudar violino com 12 anos na Orquestra Jovem de Contagem, em Minas. Veio para o Rio e hoje estuda com Daniel Guedes, na UFRJ, e ensina na Maré. Outros formam pequenas bandas.

— Eles ganham tocando em casamentos e festas. Até em enterro já tocaram — diz Márcio Selles, que criou com a mãe a Orquestra da Grota, que atende a 250 crianças e jovens na comunidade, além de 300 em outros dez polos, e que faz concerto amanhã, às 9h, na Vila Olímpica da Maré, como parte do Rio Cello Encounter.
E muitos conseguem entrar na faculdade.

— Mais de 20 estão na universidade, de música ou não. Teve gente nossa que foi fazer Pedagogia, Geografia. Nunca ninguém da Grota tinha chegado lá — diz Selles.

Mesmo que nem todos sigam a carreira musical, em pouco tempo a transformação em suas vidas é perceptível por todos.

— Eu procurava psicólogo para eles no posto de saúde, mas sempre diziam: “Vou ver” — diz Margarida Soares, de 60 anos, avó dos gêmeos Felipe e Flávio Matheus, de 11, da Maré. — Agora, quando disseram “estamos vendo”, falei: “Não precisa mais.” Eles mudaram muito. O Felipe, que era agressivo, está tranquilo, e o Flávio, que era fechado, está mais falante e sorridente.

É como explica Heloísa Fischer:

— O objetivo dos projetos não é formar músicos profissionais, mas sim apresentar a crianças e jovens a prática musical, e usar o modelo da orquestra como minimodelo da sociedade.

No caso da Ação Social, sequer há avaliações.

— Claro que temos preocupação de que toquem bem, mas não temos nenhuma peneira — diz Fiorella. — Nossa meta é incluir e educar, não segregar. Mais do que qualquer coisa, somos voltados para a educação. Queremos estruturar o indivíduo, que tem que ter concentração, higiene, disciplina. Alguém que toca violino por quatro, cinco anos, não vai virar bandido. Ele já entra no caminho da civilidade.

Fundado em 2000 pelo maestro Claudio Moreira e por seu pai, o PIM é um Ponto de Cultura e um Pontão de Cultura, atendendo a mais de 600 alunos carentes, de 4 a 92 anos — caso de uma senhora que toca violoncelo.

Os resultados são tão bons que a coordenadora executiva, Célia Pinheiro Moreira, ouviu de uma mãe:

— O psicólogo me disse: “Você pode tirar seu filho de qualquer atividade, menos do PIM.”

Academia garimpa alunos

Um projeto diferente é a Academia Juvenil da Orquestra Petrobras Sinfônica, criada em março, que tem como coordenador pedagógico Guilherme Carvalho e como regente Felipe Prazeres. Ela garimpa os melhores alunos dos outros projetos e dá aulas particulares, prática orquestral e aulas de percepção e teoria musical.

— Percebemos que havia uma grande lacuna na formação desses jovens. Eles fazem testes de habilidades específicas para entrar na universidade e não estão aptos ainda — diz Prazeres.

Um problema comum é a falta de verbas. Em geral, o que sustenta os projetos são parcerias e convênios com o poder público e patrocínio de empresas via leis de incentivo, mas muitas vezes não há continuidade. A Orquestra da Maré ficou parada quase um ano, e agora é bancada pela chinesa State Grid. Fiorella consegue parcerias locais. Em Barra Mansa, o ex-prefeito Roosevelt Brasil foi um apoiador de primeira hora, assim como Luiz Augusto Mury, secretário municipal de Cultura. Criada pelo maestro Jony William, a Orquestrando a Vida — que mantém a Orquestra Sinfônica Mariuccia Iacovino — enfrenta crônica falta de verbas, apesar dos elogios constantes, de um convênio com a prefeitura de Campos e do apoio permanente de Myrian Dauelsberg, da Dell’Arte. Mas todos tratam de contornar os obstáculos e apostam no trabalho.

— A médio e longo prazo o Rio vai se musicalizar — diz Fiorella.

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